A gente lê para entender, ficar por dentro, mas muitas vezes lemos e não entendemos. E agora?
- Cris Fernandes
- 7 de jun. de 2017
- 4 min de leitura

Quem nunca leu alguma coisa, qualquer coisa, um folder de propaganda, um artigo de revista, uma tirinha no jornal e não entendeu nada. Quer dizer, você foi capaz de decodificar o que estava escrito, mas não foi capaz de significá-lo, produzir sentido. Tem até gente que fala: Estou ficando velho mesmo ou burro. Mas não é nada disso. Você pode não ter compreendido o que leu por inúmeras razões. Vou explorar algumas delas agora.
Imagina a situação: uma amiga descobre que está grávida e como é seu primeiro filho, compra livros sobre bebês e criação de filhos. Daí, uma semana depois chega dizendo que tudo era grego para ela. Acontece que esses livros abordam um assunto que, a priori, é completamente desconhecido e trazem, muitas vezes, um vocabulário técnico (da medicina, por exemplo). Ninguém realmente teria a obrigação de entender tudo. Concordamos que há uma diferença entre dizer congestionamento nasal e nariz entupido, cefaleia e dor de cabeça. Mas o uso de uma expressão ou outra não vai gerar confusão. Entretanto, termos como adenite, abscesso, afasia, pletória, dispneia e otalgia não são termos tão tranquilos assim e o campo do entendimento começa a ficar minado.[1]

Você certamente lembrou das bulas de remédios e das tentativas de leituras frustradas. Sinceramente, diria que, muitas vezes, é melhor não as ler baita o desespero que dá.
As bulas possuem um vocabulário técnico que escapa a nossa compreensão direta. Textos técnicos de áreas que não dominamos vão certamente gerar esse problema.
Além de o assunto ser desconhecido, possuem um corpus especializado, quer dizer, palavras e designações próprias, o famoso jargão. Os textos podem, ainda, estar travestidos de estrutura textual pouco amigável. Basta lembrar do seu livro de química cheio tabelas, conceitos e fórmulas.

Puxando esse gancho para o mundo tecnológico, dia a dia somos praticamente forçados a incluir novas palavras em nosso vocabulário: twitter, hashtag, facebook, tumbrl, pinterest, trend, crush, style, shippar, mindset, fail, hipster, what’s up (que transformamos em zap), nudes, meme, trollar, snap. Essas palavras surgem como neologismos ou estrangeirismo e o jeito é conviver com elas. Obviamente, isso também acontece em nossa língua materna na forma de expressões, gírias: tombar, causar, coxinha, lacrar, milgrau, sussa, divar. A lista é infinita e só mostra a capacidade criativa das línguas e dos falantes.
Os escritores são mestres nisso. A primeira obra que li de Guimarães Rosa foi Grande sertão: veredas e a primeira palavra, da primeira página do livro é nonada.[2] Não fazia ideia do que era nonada e nonei, ou melhor, nonadei de vez logo no início.[3] Manuel Bandeira, porém, tornou muito mais aprazível a experiência com os neologismos:[4]

Neologismo
Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
que traduzem a ternura mais funda
e mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.
Falando em poesia, é impossível não lembrar das aulas de literatura em que éramos compelidos a fazer análises e mais análises das obras literárias. Sempre tinha aquela pergunta infame sobre o que o autor queria dizer. Lembro-me de uma dessas aulas, mas já na faculdade, em que a professora nos apresentou uma das passagens mais célebres de Fernando Pessoa: Navegar é preciso, viver não é preciso.[5] A frase, na verdade, é creditada ao general romano Pompeu que, segundo dizem, a usava para encorajar seus marinheiros durante as viagens. Mas e a frase, como vamos interpretá-la? Há algumas respostas. Tomando ao pé da letra, diríamos que temos a necessidade de navegar, sair e viajar, mas não de viver (contraditório, pois uma coisa parece implicar a outra) ou podemos dizer que o ato de navegar é preciso, porém no sentido de justo, certeiro, sem erro, já que há diversos instrumentos náuticos que garantem isso, por outro lado, o ato de viver está sujeito a intempéries e inconstâncias não imaginadas. Essa última análise é a mais plausível, mas alguém ainda pode dizer: não, não! Navegar também é impreciso e se bate uma tempestade e você sai do curso esperado. E agora? Estamos lidando, na verdade, nos dois primeiros casos, com a polissemia e, neste último, com a extrapolação, redução ou divergência da significação. Sim, é complicado.

Conselhos? Às vezes é melhor esperar a maturidade chegar (?!). Li Uma noite em Curitiba do Cristovão Tezza aos dezoito anos mais ou menos e voltei a ler dez depois.[6] A primeira leitura havia sido maçante e com trechos de pleno blackout que eu literalmente passei por cima. A segunda leitura foi bem diferente. Credito isso ao tempo simplesmente e ao fato de estar muito mais preparada para receber e digerir os assuntos que o livro aborda. Outra dica é ler quem já leu, principalmente se for um texto teórico, recorrendo às famosas coleções Para entender, Tudo o que você precisa saber sobre, Série princípios etc. (Sem esquecer do material original, ok?). Materiais de apoio como dicionários, videoaulas, apostilas são muito úteis, por isso não podem faltar. Fazer resumos, escrever palavras-chaves, fazer mapas mentais, grupos de estudos, questionários ou simplesmente discutir com um amigo também são boas estratégias e não se esqueça daquele que tudo sabe, o São Google.
[1] Para ajudar o leitor, as definições desses termos estão logo abaixo e foram extraídas de: https://academiamedica.com.br/blog/o-idioma-medico-glossario-de-termos-medicos-para-academicos-de-medicina (Acesso em 16/08/2017).
Adenite: inflamação aguda de gânglios linfáticos.
Abscesso: acúmulo de pus, geralmente causado por infecção bacteriana.
Afasia: perda da habilidade de uso da linguagem devido a uma lesão na região cerebral relacionada à linguagem.
Pletória: congestão.
Dispneia: dificuldade para respirar ao nível de trato respiratório inferior.
Otalgia: dor de ouvido.
[2] GUIMARÃES ROSA, João. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
[3] A esse respeito, recomendo a leitura da entrevista do tradutor Berthold Billy que fala do desafio de traduzir a obra de Rosa e termos como nonada. Disponível em: http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=249 (Acesso em 17/08/2017).
[4] BANDEIRA, Manuel. Poesias completas. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1948.
[5] A frase original em latim é Navigare necesse, vivere non est necesse. Mais informações em: http://www.uc.pt/navegar/ (Acesso em 16/08/2017).
[6] TEZZA, Cristovão. Uma noite em Curitiba. Rocco, Rio de Janeiro, 1999.
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